Sindicato dos Aeroviários no Estado de São Paulo
Sábado, 21 de dezembro de 2024

O VAZIO DA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

25/02/2014

Os direitos fundamentais estão concentrados no ser humano e na dignidade da pessoa humana. O cidadão sem o respeito à sua dignidade deixa de ser sujeito de direito e se transforma em mero objeto de manobra. Sendo o salário o meio de sobrevivência do trabalhador empregado, deve ele estar ao abrigo de todas as garantias aos direitos fundamentais da pessoa humana. É o salário que garante a sobrevivência do empregado, até mesmo porque este só trabalha por necessidade de sobreviver.

Os créditos de natureza trabalhistas gozam da prioridade em seu recebimento quando se tratar de concurso de credores, quer em processo de falência (art. 449, § 1º da CLT), quer em processo de execução (arts. 613 e 711 do CPC e art. 186 do CTN). Conforme norma estampada no artigo 449, § 1º da CLT, na falência, as verbas trabalhistas constituirão créditos privilegiados em sua totalidade dos salários devidos ao empregado.

A Lei de Falências e Recuperação de Empresas, diferentemente, limita o privilégio ao crédito trabalhista em 150 salários-mínimos, verificados na época do efetivo recebimento (art. 83, I, da Lei 11.101/2005). Há um evidente conflito entre as normas mencionadas. A CLT afirmando a preferência pela totalidade do crédito trabalhista (art. 449, § 1º) e a Lei de Falência impondo limite em 150 salários-mínimos. A Lei de Falências é posterior à CLT, mas é genérica em relação ao concurso de credores, enquanto a CLT é anterior à Lei de Falência, mas é específica para tratar de direitos trabalhistas, razão porque se pode entender que a CLT deva prevalecer sobre a Lei de Falências. A recuperação judicial de uma empresa visa resguardar os interesses dos proprietários e investidores, inspirada pelo argumento de que a melhor solução é a de “mercado”. Segundo autoridades na matéria, esta lei teve como objetivo inserir o Brasil nas regras do novo liberalismo, em detrimento aos direitos individuais e dos trabalhadores, privilegiando a defesa do crédito e, em última instância, do sistema financeiro. A propósito, recebeu do professor da USP, Dr. Modesto Carvalhosa, o apelido de lei FEBRABAN.

Com o advento da Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei 11.101/05), publicada em 9 de fevereiro de 2005, passando a vigorar em junho de 2005, o Brasil passou a ter novo ordenamento jurídico tratando do tema.

Em 17 de junho de 2005, somente oito dias após a entrada em vigor da Nova Lei de Recuperação de Empresas, a Varig S.A., a Nordeste Linhas Aéreas S.A. e a Rio Sul Linhas Aéreas S.A. entraram com pedido de recuperação judicial. À época, a empresa apresentava uma dívida de R$ 8,4 bilhões, tendo como credores, dentre outros, dezenove mil trabalhistas e o Fundo de Pensão Aerus, cujo crédito apontado era de dois bilhões de dólares. A legislação anterior não permitia que empresa do setor aéreo entrasse com pedido de concordata.

Quando a Varig entrou com o pedido de recuperação judicial, contava com 58 aeronaves, com vôos regulares para 21 cidades do exterior e 32 do Brasil. Neste momento, os trabalhadores da empresa imaginavam que a empresa começaria a dar a volta por cima sem atentar para a possibilidade da aplicação do artigo 60 e parágrafo único, cujo teor estabelece que “se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observando o disposto no art. 142 desta lei” –Leilão, lances orais, propostas fechadas e pregão. No parágrafo único do artigo 60, enfatiza-se que “o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e NÃO HAVERÁ SUCESSÃO do arrematante NAS OBRIGAÇÕES DO DEVEDOR, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no parágrafo primeiro do art. 141 desta lei”. No que tange à desoneração da SUCESSÃO, deve ser agregado, com todas as letras que o adquirente FICA LIVRE DE TODAS AS DÍVIDAS TRABALHISTAS DO ALIENANTE.

Trocando em miúdos, a lei de recuperação judicial de empresas, no resguardo absoluto do capital, possibilita que a parte boa da empresa em crise seja vendida, sem que o adquirente arque com os desdobramentos sociais. Leva a parte boa e deixa a parte “podre” nas mãos dos trabalhadores e demais credores que, no caso da Varig, está consubstanciado, também, no Fundo AERUS de pensão.

No dia 20 de julho de 2006, houve o leilão da empresa, em seu hangar no aeroporto Santos Dumont, tendo a “parte boa” arrematada pela VarigLog (empresa de logística e transporte de cargas), controlada pelo fundo de investimentos norte-americano Matlin Patterson, reunidos na empresa Volo Brasil, pela bagatela de 24 milhões de dólares. Oito meses depois, a empresa foi vendida para a Gol por 320 milhões de dólares. A nova Varig ficou com os ativos mais valiosos, caso dos slots, que são os horários de pouso e decolagens em diversos aeroportos, muito cobiçados no setor e o Smiles, o programa de milhagem. Em 2012, a Delta Airlines comprou fatia de cerca de 3% da Gol por US$ 100 milhões.

Por não poder operar vôos com a própria marca, que foi cedida à Gol, a Fundação Ruben Berta criou a Flex Linhas Aéreas, que chegou a operar vôos regulares num acordo Varig/Gol, o último dos quais em novembro de 2009. No dia 20 de agosto de 2010, foi decretada a falência da antiga VARIG, além de duas outras empresas do grupo: a Rio Sul Linhas Aéreas e a Nordeste Linhas Aéreas. O fim foi ditado pela alegação de que a Varig não tinha condições para pagar as suas dívidas. A antiga Varig faliu sem ver o fim da ação que cobrava da união cerca de R$ 4 bilhões por perdas com o congelamento de tarifas nas décadas de 1980 e 1990. Aos demitidos e aos participantes do Fundo Aerus –para o qual a Varig deixou de contribuir de fato desde 2002– bem como aos quase 20 mil credores, incluindo o Tesouro, Petrobrás, INSS e Infraero, restaram créditos a receber, incluindo a dívida pendente do governo federal pelo congelamento tarifário.

Até o presente momento, os demitidos da Varig e os aposentados e pensionistas do Fundo Aerus, para o qual a Varig deixou de contribuir desde 2002, estão desamparados. A empresa faliu e o fundo de pensão foi liquidado. Aposentados e pensionistas, em muitos casos, não recebem sequer o suficiente para comer. Mais de

700 aposentados já faleceram e há inúmeros casos de pessoas acometidas por doenças, como a depressão.

O TST, em 2012, por decisão unânime, blindou a questão da sucessão trabalhista, acolhendo a Lei de Recuperação Judicial de Empresas, que assegura ao adquirente o direito de “não responder por obrigações trabalhistas das empresas sujeitas a recuperação judicial”.

De concreto, a grande expectativa dos milhares de trabalhadores que ficaram sem receber salários atrasados e suas verbas rescisórias e dos aposentados e pensionistas do Fundo Aerus, é de que o Supremo Tribunal Federal coloque em julgamento o processo de defasagem tarifária, que poderá consubstanciar a tábua de salvação para uma situação desesperadora. Os cálculos do valor da indenização variam de R$ 4 bilhões a R$ 8 bilhões.

O movimento sindical brasileiro pode contribuir muito para ajudar a resgatar a dignidade deste enorme contingente de ex-funcionários da Varig e também evitando que outras vítimas sejam feitas em nome de uma lei de recuperação judicial de empresas, que precisa ser intensamente debatida, pois é impossível admitir que, nas conformidades legais, os direitos fundamentais dos cidadãos e trabalhadores sejam esmagados.