Sindicato dos Aeroviários no Estado de São Paulo
Segunda, 14 de Outubro de 2024

A JANELA DE OPORTUNIDADE ABERTA PELOS ACIDENTES DA BOEING

21/03/2019

Dois acidentes graves — em apenas cinco meses — com aviões da Boeing, modelo 737 Max, anunciam um período de turbulência na aviação comercial global nos próximos anos. A crise se transforma em oportunidade para grupos rivais da empresa americana. Outra gigante do setor, a europeia Airbus deve se beneficiar diretamente com seus A320 abocanhando uma fatia das encomendas do atual campeão de vendas da fabricante dos Estados Unidos. Na Ásia, a Corporação de Aviação Comercial da China (Comac, na sigla em inglês), fabricante do novato C919, ganha espaço também para executar a estratégia do governo chinês de tentar derrubar o duopólio do setor aéreo mundial.

 

O presidente chinês Xi Jinping construiu um programa que pretende fazer do país asiático uma superpotência global em tecnologia e indústria, batizado de Made in China 2025. O setor aeroespacial é um dos três pilares centrais do projeto, vindo na sequência das duas pontas de lança: a tecnologia da informação e a robótica.

Dentro de cinco anos, com o tamanho da população e o foco em expansão do consumo no país, a China subirá ao posto de maior mercado de passageiros no transporte aéreo mundial. De carona nesse crescimento, terá também a maior demanda por aviões do mundo. No entanto, quer trocar o provável título de “maior comprador” de aeronaves pelo de “um dos grandes vendedores”.

A viagem chinesa para se tornar uma superpotência na indústria aeronáutica e aeroespacial inclui uma fábrica de aeronaves; uma rede de fornecedores de componentes formada a partir de joint ventures com empresas que são referências globais em suas áreas; uma parceria com os russos; e, segundo suspeitas levantadas pelo governo americano e rechaçadas por Pequim, espionagem.

Para especialistas, o plano é correto, o que não significa que será executado em céu de brigadeiro. Numa indústria em que as vendas se multiplicam com base em produtividade, eficiência e segurança, um fabricante precisa de anos, além de milhões de horas de voo bem-sucedidas, para atrair a clientela.

O mercado de aeronaves de aviação comercial é global, pontuou Chad Ohlandt, engenheiro sênior da Rand Corporation, em Washington, consultoria de análises e pesquisas sobre o setor. E as companhias aéreas constituem mercados nacionais, explicou ele, dada a natureza altamente regulada do espaço aéreo e das permissões de pouso. Ganhar um lugar ao sol nesse ambiente vai exigir da China grande esforço.

O protagonismo da China na crise enfrentada pela Boeing mostra que o país asiático está atento. O governo chinês foi o primeiro a interromper a operação do 737 Max, alegando atuar com tolerância zero a riscos de segurança. Determinou poucas horas após o desastre com o avião da Ethiopian Airlines, ocorrido no último dia 10, que os quase 100 aviões Max que operam no país asiático — de uma frota total no mundo de 371 — ficassem no chão até que a segurança do equipamento fosse garantida pela Boeing.

“Se existe um gesto político na atitude da China em ter sido o primeiro país a aterrar o 737 Max, foi bem colocado. Não há como não interpretar essa decisão sem considerar a disputa comercial entre os Estados Unidos e a China. A FAA (Administração Federal de Aviação, órgão regulador americano) foi a última a suspender as operações do avião. Isso levantou questionamentos”, avaliou o engenheiro aeronáutico Jorge Leal Medeiros, professor da Poli-Universidade de São Paulo (USP). “E, claro, é uma forma de também demonstrar compromisso com a qualidade e a segurança dos aviões num momento em que constrói sua própria indústria de aviação, a Comac.”

O Boeing 737 Max contabilizou dois acidentes fatais em um intervalo de cinco meses. O primeiro deles foi em outubro do ano passado, quando um avião da Lion Air, da Indonésia, caiu logo após decolar, deixando 198 mortos. Neste mês, outro Max, desta vez da africana Ethiopian Airlines, também caiu pouco depois de levantar voo de Adis Abeba, matando as 157 pessoas que estavam a bordo.

O movimento da Administração de Aviação Civil da China (Caac, na sigla em inglês) foi, na sequência, acompanhado por outros países e empresas aéreas. Dois dias após o acidente na Etiópia, mais de 50 companhias e uma dezena de países haviam seguido os passos da China. Só então, e após a União Europeia ter fechado seu espaço aéreo para o Max, foi que a FAA acendeu a luz vermelha para o avião.

A aterragem dos aviões representa um revés para a Boeing, que, no Brasil, está criando uma parceria com a Embraer na unidade de jatos comerciais da fabricante brasileira. Entre o primeiro dia útil após o acidente com o avião da Ethiopian e a última segunda-feira, os papéis da companhia registraram uma queda de 11,9%, tombo de US$ 28,6 bilhões em valor de mercado. Voando na direção contrária, a Airbus, nesse mesmo período, viu suas ações subir 5,8%, valorizando-se em US$ 7,6 bilhões.

Cifras são eficientes também para mostrar o tamanho dessas companhias e o tamanho do desafio que a China pretende encarar. Mesmo com a perda, a Boeing está avaliada em US$ 212,2 bilhões, pouco mais que o dobro do valor de mercado da concorrente europeia, que está em US$ 104,9 bilhões. A americana encerrou 2018 com avanço de 8% em receita, para US$ 101,1 bilhões, tendo realizado 806 entregas de aeronaves, quase um terço delas de 737 Max.

A previsão é que a crise com o 737 Max esteja equacionada até abril. A Boeing precisa corrigir uma falha no sistema de controle de voo. O software Maneuvering Characteristics Augmentation System terá de ser atualizado em toda a frota em operação, e os pilotos também deverão passar por revisão no treinamento para comandar a aeronave.

“O que se sabe até aqui é que o 737 Max precisa passar por uma correção de software. É problema gravíssimo. Em tese, porém, seria de fácil correção. Mas já traz impactos para a companhia. Primeiro, à marca Boeing, que ficará maculada por um tempo. Depois, há o impacto de curto prazo numa linha de produção de onde saem 52 aviões por mês e que está com as entregas interrompidas. Mais adiante, virá o impacto em encomendas”, disse o economista Humberto Bettini, professor de engenharia de produção da USP.

Companhias aéreas de diversos países — como VietJet, do Vietnã, Kenya Airways e Lion Air — estão reavaliando encomendas feitas à Boeing. Elas consideram comprar da fabricante europeia, o que pode impactar negativamente a carteira de US$ 600 bilhões em pedidos da americana.

No Brasil, apenas a Gol voa com o 737 Max, tendo sete aviões desse modelo na frota de 121 aeronaves — todas da Boeing. A empresa calcula ganhos em produtividade, receita e corte no endividamento para os próximos anos com base na mudança que realizará em sua frota. Ao todo, a Gol espera 133 aviões Max a serem entregues até 2028.

O salto para a Comac deverá demorar a acontecer. A China concentra esforços para decolar na indústria de aviação. A estatal foi criada em 2008 como o motor que dará ao país um lugar no tabuleiro da aviação global, perseguindo a ambiciosa meta de se tornar uma fabricante de aeronaves comerciais de classe mundial até 2035. Sob o guarda-chuva aeroespacial, os chineses vão produzir também outras aeronaves, como helicópteros, turbinas e motores, sempre a partir de parcerias com os fornecedores estrangeiros.

Em linhas gerais, o portfólio da Comac, até aqui, inclui três modelos de aviões, estando apenas um deles em operação, o jato regional ARJ21, já utilizado por algumas aéreas locais. Futuramente, virá ainda o CR929-500, projeto desenvolvido em parceria com os russos, que terá outras duas versões, sempre para voos de longo curso. Está no C919, porém, a principal aposta da fabricante chinesa.

O atual mapa-múndi da aviação comercial — tomando como horizonte os próximos 20 anos — mostra um fluxo crescente de aeronaves em direção à China. Até 2037, o transporte aéreo de passageiros vai dobrar para 8,2 bilhões, avançando em média 3,5% ao ano, segundo estimativas da Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata, na sigla em inglês). A região de Ásia e Pacífico será o motor desse crescimento, respondendo por mais da metade desses novos viajantes.